Lisboa
A luz vinha devagar
Através do firmamento...
Vinha e ficava no ar,
Parada por um momento,
A ver a terra passar
No seu térreo movimento.
Depois caía em toalha
Sobre as dobras da cidade;
Caía sobre a mortalha
De ambições e de poalha,
Quase com brutalidade.
O rio, ao lado, corria
A querer fugir do abraço;
Numa vela que se abria,
E onde um sorriso batia,
O mar já era um regaço.
Mas a luz podia mais,
Voava mais do que a vela;
E o Tejo e os areais
Tingiam-se dos sinais
De uma doença amarela.
Ardia em brasa o Castelo,
Tinha febre o casario;
Cada vez mais nosso e belo,
O profeta do Restelo
Punha as sombras num navio...
Nas casas da Mouraria,
Doirada, a prostituição
Era só melancolia;
Só longínqua nostalgia
De amor e navegação.
(...)
Miguel Torga, in “Poesia Completa”
Fotografia tirada no terraço do Hotel Mundial
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